sábado, 29 de novembro de 2008

Os ombros suportam - Caros Drumond de Andrade.

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundoe ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifíciosprovam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculoprefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Nenhum comentário: